Friday, December 22, 2006

O problema do silêncio

Sexta-feira. Dez da noite. Mais um programa de entrevistas em directo, no canal alternativo da televisão pública portuguesa. Mafalda Seabra, a apresentadora, recebeu Vítor Guedes, um reputado professor catedrático na área das relações internacionais.
A dado momento da entrevista, sem que nada o fizesse prever, surgiu a pergunta de Mafalda: “e se você fosse jornalista?”.
Vítor Guedes passou a mão pelo cabelo, depois pela testa, respirou fundo e, finalmente, respondeu: “morria de pé”.
A apresentadora ficou pensativa e o silêncio tornou-se perturbador, mesmo naquele programa, onde a calma e a reflexão eram marcas de qualidade. Aqueles cinco segundos duraram uma eternidade e o fundo negro por trás de Mafalda sugeriu a queda a pique das já poucas audiências do programa.
O entrevistado sentiu uma certa tensão no ar e continuou, procurando salvar a pele da sua interlocutora: “Repare: para que serve o Natal?”.
Mafalda abriu os olhos, assustada, como que a dizer que perdeu o domínio da entrevista, até que, por momentos, percebeu que devia reagir. Sorriu e lançou uma palavra: “continue”.
Vítor acedeu e prosseguiu o seu discurso: “o Natal serve, ou para o limpa pára-brisas, ou para as questões amorosas”.
Mafalda continuava boquiaberta, perdida.
“Depende tudo da linguagem. O Natal é uma linguagem que é válida apenas para alguns povos, da mesma forma que um jornalista morrer de pé é só para alguns”, salientou Vítor.
“É tudo uma questão de linguagem, ou de percepção da realidade”, concluiu a entrevistadora, como que renascida do sono profundo a que o seu entrevistado a tinha remetido.
Mafalda renasceu, então, com a sua tão característica linguagem, com a sua percepção da vida humana e com o silêncio imperturbável do público que os escutava, sentado no sofá, aquecido por um barato radiador a óleo, de roupão a agasalhar o tronco e de chinelos a permitir um merecido descanso aos pés.