Wednesday, February 07, 2007

Um tapete voador

A dona Alda é a empregada doméstica do Francisco. Foi empregada da família Brandão desde sempre.
Agora que o Francisco cresceu e já vive sozinho, manteve-se fiel à dona Alda, que tem um filho dois anos mais novo. O Francisco ensina português, é um jovem professor, enquanto o Augusto, filho da respeitável senhora, é engenheiro civil.
Um dia destes, enquanto limpava a secretária onde o docente deixa toda a sua papelada, deu de caras com um texto que o próprio tinha escrito, a propósito de um exercício que pensara propor aos seus alunos. A dona Alda nunca foi uma pessoa intrometida, mas nesse dia não resistiu à tentação e acabou mesmo por ler.
“Do meu tapete voador, vejo tudo o que quiser e fecho os olhos a tudo quanto me apetecer. No meu tapete voador, levo Yerevan, a Arménia e todo o seu povo, mas fecho os olhos ao vermelho e branco, à U.R.S.S. e a um país novo. Vejo mais longe a Albânia, Tirana e a Vânia, mas não esqueço Atenas nem a Suzana com o seu blusão de penas.
No meu tapete voador, parto até Belgrado, visito o túmulo de Tito, entro no Cibercafé e falo com o Eduardo. Caminho do forte até à estação, e é tal a sorte que o comboio está mesmo ali à mão.
Do meu tapete voador, recordo o atravessar dum país. Parece que agora são seis, foi assim que alguém quis. E outra vez a história do Kosovo, que volta-não-volta surge, como se fosse um tema novo.
Quero ir ao Japão sem ser de avião, mas com o meu tapete voador não é possível. Meto-me então no comboio a vapor, talvez seja mais exequível. Sei que é mesmo necessário fazer o trans-siberiano, mas cheira-me que ainda não é este ano.
Não sei se é falta de tempo ou de espaço; é falta de dinheiro, essa espécie de ameaço.
Agarro no meu tapete voador, que agora arrumo. Já sonhei tudo por hoje: sonhei viagens, sonhei consumo”.
A dona Alda sentiu-se orgulhosa do menino Francisco, quase como se ele fosse seu filho. Como se ele ainda não fosse um formador de consciências, como se nunca tivesse crescido. Continuou a limpar e a arrumar, agora mais feliz, mais contente por ali estar.

Tuesday, February 06, 2007

Tudo por causa do olfacto

Afonso estava numa tasca com o seu primo Miguel, que ia comendo e bebendo alegremente. Afonso, já farto daquele cheiro a tremoços e a cerveja, incitou o primo a irem dar um passeio, sem rumo definido.
“Deves estar a brincar comigo. Os pneus do teu carro cheiram a borracha de terceira categoria, além do raio do cheiro a madeira que infestou o habitáculo do veículo. Já te disse que isso de andares com a Vanessa, noite sim noite não, a comprar o mobiliário todo naquela multinacional sueca, e depois deixares as caixas no carro, não é boa ideia”, transmitiu Miguel.
Afonso sorriu, retorquindo: “vá lá, tenho de pôr gasolina e assim aproveitas para cheirá-la, como tanto gostas. É que aproveitas mesmo, porque hoje vou encher o depósito”.
Miguel esboçou finalmente um sorriso e, quando Afonso estava a atestar o depósito do carro, virou-se para o primo, repentinamente, desafiando-o: “vamos andar de comboio, vamos procurar aquele cheiro a carril de que ambos tanto gostamos. Nem que seja só até ao Entroncamento”.
Acabaram por ir. Partiram de Santa Apolónia a meio da tarde, já com o bilhete de ida e volta comprado, e passaram as viagens na carruagem bar, com o cheiro das bifanas, do gin tónico e dos amendoins bem presentes. Quase tão fortes como o cheiro que adivinhavam vir do exterior da carruagem: do rio Tejo, das flores ainda vivas, do alcatrão mais ou menos cuidado, do fumo dos carros e das fábricas.

Thursday, February 01, 2007

Viver à conta do pincel

João Santos apresentou ontem a sua primeira exposição de pintura a solo, sem a presença dos quadros dos amigos do costume, Pedro Soares e Fátima Rodrigues.
Os presentes encontraram-no com um pincel atrás da orelha, qual merceeiro com o lápis, dando as boas vindas aos visitantes. Apesar da calvície em estado bastante avançado para a sua idade, e da pêra que não disfarça o seu ar de artista meio enlouquecido, João Santos caminha para os 50 anos com um ar quase tão jovem como a sua filha adolescente, a Joana.
Na galeria onde expôs as suas obras, proliferavam relatos de toda a sua actividade artística ao longo da vida. Lembravam as suas poesias na adolescência, aquelas que lhe saíam nos intervalos dos treinos e campeonatos de luta livre, para os quais precisava de fazer dietas rigorosíssimas, sob pena de ser excluído das competições, por peso a mais. Hoje, olha-se para a sua barriga protuberante e percebe-se o motivo daquele esforço.
Relatavam ainda a sua entrada na Faculdade de Direito e consequente desistência, no pós 25 de Abril de 1974. Nesse Período Revolucionário Em Curso, apostou antes numa licenciatura em Educação Física, para contrariar os pais. Foi também recordada a sua dedicação aos cartoons que fazia para diversos jornais e uma iniciação nas danças de salão, para conhecer ainda mais miúdas.
Terminaram aquela narração referindo a sua desistência do ensino do desporto aos jovens, devido à sua aposta total na pintura, que já lhe permite ganhar a vida desse modo, o que era pouco expectável em Portugal.
Quando João repara, enfim, que aquela pequena multidão já leu tudo o que tinha a ler e que está, finalmente, centrada na sua pessoa, agarra no pincel que tem sobre a orelha, puxa-o, molha-o na tinta vermelha e desata a salpicar os convidados, como forma de agradecimento pela sua presença.