Wednesday, November 21, 2007

Edmundo entre os homens e as mulheres

“Há quanto tempo é que não dormias com ele, Alzira?”
“Estás num velório. Vê se te comportas, Deolinda!”
“Bem me parecia... vocês nunca tiveram vergonha na cara.”
“Vê se te calas. Vocês estão divorciados há 20 anos.”

No outro canto da capela da Senhora da Saúde, encontrava-se Ricardo, lavado em lágrimas. Estava desconsolado pela morte do pai, bem como todos aqueles que conheceram Edmundo e que com ele privaram, com maior ou menor proximidade.

“É mesmo verdade que o gajo virou?”
“Sei lá, comigo nunca se meteu ele!”
“Mas já viste algum macho a sério com um furo na orelha?”
“O homem dizia-se vangardista ou vangurdista, ou lá que moda esquisita é aquela.”
“Acho que isso é vanguarrismo...”

Afonso e Teófilo, que estavam no canto oposto ao do filho mais velho de Edmundo, Ricardo, calaram-se à chegada daquele que terá sido o último grande amigo do homem bragantino, agora ali estendido num caixão, sem pinga de cor, exangue, vestindo um fato às riscas, feito com os tecidos da sua retrosaria, e um lenço já coçado ao pescoço, por entre o casaco mal abotoado, que lhe dava um tremendo ar de maltrapilho.

“Os meus pêsames, meu rapaz”, disse Ricardo.

E, dito isto, os dois homónimos abraçaram-se e Ricardo, o filho, tornou a chorar.

“Que mariquice que vai pr’áli!”
“Respeita a memória do teu amigo. Já te deves ter esquecido que muita da tua boa fama no Mercado da Ribeira conquistaste-a com o suor dele.”
“Mas depois de velho é que tinha de virar? Não acho normal! Até o filho é maricas!”
“Achas mesmo que ele andava com aquele outro Ricardo?”

Dionísio e Amílcar iam discutindo uma suposta homossexualidade do amigo que, apesar do seu porte alto e largo, numa tez escurecida por muitos anos a trabalhar sob o sol que visitava a lota, com ondas irreverentes e grisalhas na cabeça, e depois de muitas mulheres conquistadas durante a juventude e idade adulta, parecia ter-se entregue ao sexo oposto. Dionísio e Amílcar prosseguiram.

“Achas que se a tatuagem no braço a dizer Ricardo fosse por causa do amor pelo filho, era preciso esperar até o bichinha fazer os 18 anos?”
“O que é que queres dizer com isso?”
“Quando o filho fez os 18 anos, conhecia ele o outro Ricardo há três meses e já andavam enrabichados.”
“Mas alguma vez o viste mesmo naquilo com o outro?”
“Não, mas vi-lhe a tatuagem e sei quando ele a fez. Ora, homem que é homem, tatua no braço o pelotão a que pertenceu na Guerra, o sítio onde combateu ou ano em que regressou.”

Mas nada disso Edmundo tinha feito pela Guerra Colonial. Por essa altura, limitara-se a fazer um filho a uma mulher, antes de ir, e o segundo a uma outra, quando regressou.
As mulheres não o largavam. E os homens, ou queriam ser seus amigos, a melhor opção para eles próprios, ou invejavam-no e perdiam, desde logo, a oportunidade de conhecer muito mais mulheres. Isto porque ai de quem dissesse mal do Edmundo.

“Mas como é que ele morreu?”
“Deve ter sido de enfarte, filha.”
“Mas o tio tinha tão boa saúde...”
“Ou então foi outra doença, filha. Mas não sei. Agora, silêncio pela sua memória.”

Dizia o cunhado de Edmundo que aquele homem nunca fizera mal a ninguém. A única vez que o vira mais exaltado fora numa quinta-feira de Maio, quando se deslocou propositadamente à lota, para lhe comprar uns robalos fresquinhos.
Na Ribeira, nunca ninguém tentou roubar Edmundo, com medo que ele ficasse com os azeites e usasse o seu corpo robusto para fazer justiça com as próprias mãos. Mas naquela manhã, ao ver uma espécie de pilha galinhas a roubar os legumes da banca da dona Alzira, Edmundo saltou detrás do seu balcão, quase que desfez a banca só com o impulso que deu e correu atrás do homem.
Apanhou-o ao fundo, depois de terem dado quase meia volta ao mercado, o bandido a fugir, Edmundo a correr atrás dele. Quando o apanhou – e nisto, os olhos da sobrinha já se arregalavam de contentamento ao ouvir o relato do pai – agarrou-o pelos colarinhos, virou-o do avesso e segurou-lhe em ambas as pernas só com uma mão. Deu-lhe uma cabeçada na omoplata direita, depois outra na esquerda, e já se preparava para uma terceira, contou o cunhado.

“Ah, valente tio!”
“Se não fosse eu, minha filha, a chegar e a detê-lo, tinha desfeito o pilha galinhas.”
“E era muito bem feito!”
“Nem imaginas o que ele gritava: Se voltas a roubar os meus vizinhos eu mato-te, seu bandido. Vai trabalhar; bandido! És um bandido!”

Não fosse a capela silenciar-se e começar a recriminar aquele entusiasmo do cunhado de Edmundo, e o senhor tinha feito uma representação quase perfeita da situação.
Quem se lembra muito bem da história é Alzira, que era a dona dos legumes, motivo pelo qual o agora defunto ficara ainda mais tresloucado. Por aqueles tempos, e hoje já toda a gente desde o Martim Moniz até Alfama o sabe, Edmundo e Alzira não eram apenas companheiros de comércio no Mercado, nem trocavam apenas legumes por peixe e vice-versa. Ofereciam muito mais um ao outro.
Conta quem sabe que, inclusive a mulher do amigo Dionísio, que vendia flores na Ribeira, chegou a juntar-se aos dois e passaram, então, a ser um trio. E o mais incrível é que dizem que andavam os três felizes assim!

“Nunca eu traí a tua mãe... mas sempre quis ser como o teu tio com as mulheres”

Nos últimos anos, contudo, a história passou a ser bem diferente. As mulheres bem que puxavam por Edmundo, mas ele já não cedia. Não cedia mas parecia que fazia pior ainda: era sempre tão simpático que elas pareciam ficar ainda mais encantadas.
Diziam dele ser um homem ternurento e bondoso: em jovem muito dado aos idosos, na idade adulta muito dado às mulheres, e já a caminho da velhice muito dado aos animais. Ou seja, era um encantador de serpentes, como dizia o Amílcar, referindo-se às mulheres como seres venenosos. O maior problema dele era não lhe darem troco!
Edmundo, esse, foi o único homem lá do bairro a quem as mulheres foram capazes de dizer que ele tinha um pitbull muito meiguinho. E enquanto o coração ainda batia, ele sorria, passando a mão pelo pêlo ao animal, enquanto piscava o olho ao Ricardo amigo, quase sempre num café próximo de todos os sítios por onde o agora falecido andava.
Acabou por morrer cedo o pobre homem. E, vá-se lá saber porquê, nunca se soube o resultado concreto da autópsia.
Segundo o experiente médico, casado com uma senhora muito fina que, nos tempos de sapateiro de Edmundo (a sua profissão entre o abandono do trabalho no Mercado e a compra da retrosaria atrás da qual a sua casa fazia traseiras), lhe pediu para ele lhe pôr muitas solas nos sapatos, assim como palmilhas e outras coisas que o pudor impede de contar, a morte deu-se por causas naturais, estritamente naturais.
Para as admiradoras do cinquentão, a verdade é que devia andar naquele organismo uma doença daquelas incuráveis, fruto de tanta má vida durante tantos anos.

“Só não me aborreço a sério contigo, Alzira, porque também foste uma vítima nas mãos dele. Partia o coração a qualquer uma, este desgraçado.”

Para Deolinda, a sua primeira esposa, o pior nem foram as traições. O pior chegava agora no fim da vida do pai do seu único filho. Sem nunca dar muito pela mudança de campo do ex-marido, o que mais impressão lhe fez foi perceber que o filho permitira que Edmundo fosse para o velório com umas cuecas rotas, com o cachucho no anelar por limpar (como se fosse preciso arear a prata) e com os seus desde sempre desejados sapatos de verniz trocados.

“Se o teu pai merecia uma coisa destas, seu desleixado...”

Afonso e Teófilo, esses, abandonavam agora a capela da Senhora da Saúde, em pleno Martim Moniz. Ainda iam abalados com a morte do amigo, mas tinham alguma mágoa por nunca terem tido a sua sorte com as mulheres, o seu reconhecimento ou o seu carisma.

“Como é que um gajo com o pé chato, narigudo e de pelos nas orelhas conseguiu ter tantas mulheres?”
“Se até nós que mantemos o nosso estatuto de machos simpatizávamos e nos ríamos à grande com a sua boa disposição, imagina as mulheres cá do bairro, que olhavam para ele e viam um tipo simpático e educado, ao contrário dos gorilas com quem casaram...”
“É que até um dente lhe faltava!”
“Pois, e tinha a cicatriz no lábio superior, e o furo na orelha... já sabemos tudo isso, mas o coitado já lá está e nós ainda vamos andar por aqui mais uns tempos, se Deus quiser.”