Sunday, March 11, 2007

Na barra do Tribunal

Alzira, Deolinda e Genoveva caminham para os sessenta anos. São donas de casa e já só fazem um ou outro trabalho de costura, actividade que desempenharam durante anos a fio, enquanto os maridos iam para os seus trabalhos: um na construção civil, outro era dono de um café, e havia um que era taxista.
Estas três senhoras, actualmente com poucos trabalhos para fazer, excluindo uma ou outra bainha ajeitada a uma vizinha ou familiar mais chegada, ocupam o tempo de que dispõem a comentar a vida dos outros.
Há uns anos, este trio, juntamente com as suas vizinhas de Alfama, juntava-se perto das Escadinhas de São Miguel e ali ficava a conversar e a produzir diatribes horas a fio, enquanto os trabalhos de costura eram deixados para depois. Nos tempos que correm, tudo é diferente. A vida dos outros é seguida via televisão, como se os ditos famosos que aparecem no grande ecrã fizessem parte da família dessas pessoas, ou então em sessões de julgamento nos mais diversos tribunais de Lisboa.
De há uns dois anos para cá, Alzira, Deolinda e Genoveva vão, pelo menos, três vezes por semana ao Tribunal da Boa Hora, assistir aos julgamentos que ali decorrem, cujos intervenientes são pessoas suas desconhecidas. No entanto, findas as audiências, aquelas senhoras têm sempre uma opinião para dar, sem cobrarem qualquer preço: ou que o juiz avaliou mal aquele caso; ou que se o homem queimou a mulher foi porque tinha motivos; ou que a mulher apenas quis o divórcio porque estava farta de viver com um bêbado; ou que a criança deve ficar sob a custódia do pai e da madrasta; ou que aquele homem é pedófilo; ou que o tal engenheiro é um violador compulsivo.
Sobre todos estes casos elas têm algo a dizer, discordando muitas vezes dos juizes: “é uma injustiça”, clamam nessas alturas, como se aqueles homens de capa negra estivessem a condenar injustamente alguém das suas famílias ou a ilibar criminosos que elas juram serem culpados. E é curioso ver como se multiplicam os comentários no final de cada sessão, como se criam pequenas assembleias à porta do Tribunal da Boa Hora, com outras senhoras e senhores de outros bairros típicos de Lisboa, para julgarem os pecados públicos dos arguidos. Como se não tivessem telhados feitos daquela substância sólida, transparente e frágil, obtida através da fusão de sílica com potassa ou soda, a que habitualmente se chama vidro.
Mais curiosos são os diálogos de Alzira, Deolinda e Genoveva no caminho de regresso ao bairro de Alfama. A meio do percurso, já esqueceram os casos daquele dia e pensam novamente nos vizinhos daquelas ruas esconsas onde habitam.
Genoveva vira-se para as amigas e diz que “quem precisava de ser preso era o Júlio, que anda sempre a bater no pobre do filho mais novo”. Deolinda contrapõe, em defesa de Júlio, que por acaso até já foi seu amante, que “devia dar-lhe com mais força, porque o raio do miúdo é um traquinas de primeira”. E é Alzira quem conclui, desempatando aquela contenda: “é uma barbaridade bater na cabeça do Arturzinho com uma colher de pau. Ainda por cima, o miúdo anda estudar. Se um dia ele tirar más notas, depois admirem-se e digam que não sabem por que é que foi”.