Tuesday, October 30, 2007

Verão

“Que secura! Acho que aqueles caracóis não me caíram nada bem com a imperial...”
“A sério? Também a ti? A mim foram os tremoços. Vamos lá reclamar?”
“Reclamar agora, Sofia, que já estamos a 50 quilómetros do restaurante?”
“Pois, tens razão... mas é que nem este ventinho me está a ajudar”
“Andas impossível, Sofia. Se está sol é porque está sol e devias ter trazido um boné. Se está vento na praia, dizes que não aguentas o vendaval só porque a areia se entranha nas páginas dos teus livros. Se está vento no carro, achas que é pouco e que não te ajuda a passar a má disposição. Tu não eras assim... se cortares o cabelo, talvez se te arejem as ideias!”

Dito isto, Leonel riu-se. Sofia não. A mulher não andava a sentir-se nada bem, e agora que o Verão atingira o seu pico, estava cada vez pior. Era incapaz de dormir uma sesta, já não se babava por uma bola de Berlim cheia de creme, também já não apanhava conchas na praia e apenas se recordava das férias do Verão passado, passadas com o irmão e a cunhada, antes destes se divorciarem.
Sentia-se como uma família após um piquenique realizado sobre uma toalha vermelha e branca aos quadrados, a meio da tarde, a descansar à sombra. Assim estava Sofia, ensimesmada, uma sombra dela própria.
30 por cento dos casais divorciam-se após as férias”, leu no jornal, enquanto o marido conduzia. E tremeu.
Estava num profundo dilema. Não sabia se devia desconfiar de Leonel, que passava mais tempo na pesca do que em anos anteriores, ou se devia contar-lhe, desde logo, que estava grávida. Mas como? Ele andava muito distante e ainda não lhe dera abertura para uma conversa dessas.

“Este ano ainda não vimos cinema ao ar livre...”
“Sabes que estão cá os meus primos de França e que temos de lhes dar atenção”
“Esse teu primo mais novo também se vai divorciar?”
“Parece que sim. Diz que não se está a dar lá muito bem com a francesa. Ainda bem que ela não veio, não me apetecia nada aturá-la”

Sofia descalçou as sandálias e arremessou-as para o banco de trás do carro, uma para cada lado, aterrando cada uma numa ponta da enorme toalha de praia que se estendia amarfanhada nos estofos. Por baixo, jornais semanais com as páginas já desordenadas, revistas cor-de-rosa com as quais Leonel embirrava, uma loção pós exposição solar, uma garrafa de água vazia, algumas canetas perdidas, um balde do sobrinho de Leonel e areia, muita areia da praia.

“Estou grávida!”
E, ao dizê-lo, Sofia tremeu novamente, temendo a reacção de Leonel. O silêncio reinou durante alguns segundos. Então, ele avançou: “dizes isso só porque estás mal disposta”.
Sofia receou que o marido não concordasse com a gravidez naquela época das suas vidas: “não estás contente, eu sei...”.
“Mas tens a certeza, fizeste o teste?”
A esposa sussurrou um “tenho” abafado, tal e qual aquele calor abafado do Verão. Depois, Leonel começou a buzinar ininterruptamente, no meio de uma estrada perdida, no Alentejo.
“Estás louco? Pára com isso!”
Desviou o carro para o descampado e começou, loucamente, a andar com a viatura às voltas, num misto de piões e carrossel. Desviou-o porque, na verdade, estava demasiado contente e jamais pensara em separar-se da sua esposa.
Só essa felicidade do marido impediu Sofia de vomitar, embora só ao final de cinco minutos Leonel tenha parado de rodopiar o carro e de gritar “yupi, yupi”.

Tuesday, October 23, 2007

Primavera

Com um beijo entrega-se ao Estio
Com uma espiga crava-lhe o peito
Um pingo de chuva a afastar o frio
Um raio de sol a recolher-se ao leito

Gémeos, Touro e Carneiro
Dois chifrudos e um a dobrar
Paixões e namoros vêm primeiro
Depois alergias e pólen para espirrar

A prima Vera de perna ao léu
Numa sexta-feira considerada santa
Ao fundo, uma mulher coberta com véu
Na esquina, um homem cego canta

Antes, andorinhas, papoilas e borboletas
Um balcão com amêndoas, ovos e folares
Depois, bifanas, copos e rezas santas
Eis as preces das festas populares

A Primavera, risonha estação
Em Aleluia traz-nos os saldos
No fim, foge piscando o olho ao marrão
Para quem Santo António é exames e não fados

Tuesday, October 16, 2007

Outono

Hoje é Outono e estão todos juntos, de novo no mesmo dia, como há 10 anos. Há uma década atrás, o Outono marcava o início das aulas de alguns petizes. Já para os mais velhos, estudantes universitários, aquela estação do ano delimitava os seus períodos de férias, sem que sequer olhassem para os horários que teriam na faculdade.
Num ano, chegaram a Santa Apolónia (que também é uma estação) num dos primeiros dias de Outono. Sobre os carris, repousavam folhas de árvore amarelecidas e manchas de água-pé que algum garrafão de revestimento branco deixara escapar. Por perto, assavam-se castanhas no átrio central do apeadeiro e vislumbrava-se a boina do assador de castanhas, mais castanha do que os troncos de árvore encarquilhados.
No ano seguinte, exactamente no mesmo dia em que haviam chegado, decidiram partir. Esqueceram-se, propositadamente, da rentrée política, ignoraram Fátima e as suas procissões, desprezaram os jogos de futebol da Liga dos Campeões, recusaram-se a comprar cadernos novos e aproveitaram o estado dos seus orçamentos para viajar, em vez de ficarem a fazer contas ao Orçamento de Estado.
6x3=18… 18… 18 é… uma dúzia e meia… uma dúzia e meia é… é melhor fazerem as contas!
Apesar de a época ser propícia e fértil para determinados frutos, não levaram marmelos porque o que lhes interessava era o produto final e, para marmelos, já bastava cada um deles. Dióspiros também ficaram para trás, porque se desfaziam.
“Mas leva só uma caixa de Benuron, meu filho…”
Como gripes e constipações são para os mais velhos, só um cumpriu o desejo da mãe.
No meio de um dia curto e de uma noite longa em terra de fiordes, lá se foi a lembrança do Benuron, a mudança de hora a que, pomposamente, se chama fuso horário, a apropriada foto a preto e branco para condizer com o Outono, a nostalgia e o frio e o vento.
Era Outono, e ora toca de abrir uma garrafa de vinho, ali mesmo na estação (de comboios, claro está), abrir as latas de atum, arremessar os chapéus-de-chuva para qualquer lado e comprar umas castanhas assadas. Sim, por lá também se vendiam castanhas assadas.
Um dos amigos olhou para uma delas, por sinal mais castanha do que qualquer outra castanha e acariciou-a. Não, não era mais castanha por ser da cor castanha, era mais castanha mesmo castanha, uma castanha mulher, pura, lisa, de pele macia e imaculada, que o rapaz considerou perfeita para guardar como recordação.
Outro dos jovens disse ter nas suas mãos uma castanha redonda e despida, como uma bola de futebol bem velha, descosida, com a sua câmara-de-ar a pedir liberdade ao mundo.
Outro houve que pegou na sua castanha aberta, qual pala sobre o olho sem olhar para o mundo, um Camões feminino, um poeta transformado em fruto para assar ou cozer.
Depois, rindo-se todos dos seus disparates, brindaram às vindimas que se processavam lá longe, em Portugal, fizeram um tchin-tchin ao Outono, às suas ainda férias e… ao sol. Porque poderia ser Verão sempre que eles quisessem!

Tuesday, October 02, 2007

Inverno

“Você não vê por onde anda?”
“Quem é que o manda andar com a pastinha na cabeça?”
“Eu circulava pela direita, como manda a lei”
“Eu sou uma pessoa, não sou um carro”
“Pedro?”
“João? ‘Tás bom, pá?”

Pedro e João, agora senhores Medeiros e Fernandes, tinham esbarrado acidentalmente um contra o outro, num dia cinzento, de chuva intensa e vento forte. A Praça da Figueira tinha quase mais vendedores de guarda-chuvas do que pessoas.
É curioso como esses vendedores aparecem nestes dias, como uma espécie de enviados do São Pedro, que procura assim a sua redenção perante os terrenos.
Serão esses homens os mesmos que fazem de amoladores da parte da manhã, anunciando a chuva, e, ao final da tarde, se transformam em vendedores de guarda-chuvas?

Pedro e João, ainda antes de se terem apercebido que se conheciam, perderam as estribeiras e já planeavam tirar as respectivas gravatas e casacos para poderem lutar melhor, num misto de judocas decadentes com dois animais selvagens a defenderem o seu território.
Como é possível que, numa praça tão grande mas com tão pouca gente (grande parte dos transeuntes tinham corrido para o metropolitano ou feito dos cafés o seu esconderijo contra a intempérie), aqueles dois tivessem embatido um contra o outro?

“Estás mais gordo”, comentou João.
“E tu mais careca”, assinalou Pedro.
“São as preocupações... um divórcio, três filhos...”, explicou João.
“E eu agora almoço na cantina do Hotel. Depois, tenho jantares fartos... a minha mulher só trabalha em casa”, justificou Pedro, sorrindo.
“Não consegues fazer dieta?”, perguntou João.
“Para quê? Vamos todos morrer!”, assinalou Pedro.

Também assim morreu a conversa daqueles que tinham sido os melhores amigos de infância um do outro, e que não se viam há mais de dez anos.