Tuesday, October 02, 2007

Inverno

“Você não vê por onde anda?”
“Quem é que o manda andar com a pastinha na cabeça?”
“Eu circulava pela direita, como manda a lei”
“Eu sou uma pessoa, não sou um carro”
“Pedro?”
“João? ‘Tás bom, pá?”

Pedro e João, agora senhores Medeiros e Fernandes, tinham esbarrado acidentalmente um contra o outro, num dia cinzento, de chuva intensa e vento forte. A Praça da Figueira tinha quase mais vendedores de guarda-chuvas do que pessoas.
É curioso como esses vendedores aparecem nestes dias, como uma espécie de enviados do São Pedro, que procura assim a sua redenção perante os terrenos.
Serão esses homens os mesmos que fazem de amoladores da parte da manhã, anunciando a chuva, e, ao final da tarde, se transformam em vendedores de guarda-chuvas?

Pedro e João, ainda antes de se terem apercebido que se conheciam, perderam as estribeiras e já planeavam tirar as respectivas gravatas e casacos para poderem lutar melhor, num misto de judocas decadentes com dois animais selvagens a defenderem o seu território.
Como é possível que, numa praça tão grande mas com tão pouca gente (grande parte dos transeuntes tinham corrido para o metropolitano ou feito dos cafés o seu esconderijo contra a intempérie), aqueles dois tivessem embatido um contra o outro?

“Estás mais gordo”, comentou João.
“E tu mais careca”, assinalou Pedro.
“São as preocupações... um divórcio, três filhos...”, explicou João.
“E eu agora almoço na cantina do Hotel. Depois, tenho jantares fartos... a minha mulher só trabalha em casa”, justificou Pedro, sorrindo.
“Não consegues fazer dieta?”, perguntou João.
“Para quê? Vamos todos morrer!”, assinalou Pedro.

Também assim morreu a conversa daqueles que tinham sido os melhores amigos de infância um do outro, e que não se viam há mais de dez anos.

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