Wednesday, November 21, 2007

Edmundo entre os homens e as mulheres

“Há quanto tempo é que não dormias com ele, Alzira?”
“Estás num velório. Vê se te comportas, Deolinda!”
“Bem me parecia... vocês nunca tiveram vergonha na cara.”
“Vê se te calas. Vocês estão divorciados há 20 anos.”

No outro canto da capela da Senhora da Saúde, encontrava-se Ricardo, lavado em lágrimas. Estava desconsolado pela morte do pai, bem como todos aqueles que conheceram Edmundo e que com ele privaram, com maior ou menor proximidade.

“É mesmo verdade que o gajo virou?”
“Sei lá, comigo nunca se meteu ele!”
“Mas já viste algum macho a sério com um furo na orelha?”
“O homem dizia-se vangardista ou vangurdista, ou lá que moda esquisita é aquela.”
“Acho que isso é vanguarrismo...”

Afonso e Teófilo, que estavam no canto oposto ao do filho mais velho de Edmundo, Ricardo, calaram-se à chegada daquele que terá sido o último grande amigo do homem bragantino, agora ali estendido num caixão, sem pinga de cor, exangue, vestindo um fato às riscas, feito com os tecidos da sua retrosaria, e um lenço já coçado ao pescoço, por entre o casaco mal abotoado, que lhe dava um tremendo ar de maltrapilho.

“Os meus pêsames, meu rapaz”, disse Ricardo.

E, dito isto, os dois homónimos abraçaram-se e Ricardo, o filho, tornou a chorar.

“Que mariquice que vai pr’áli!”
“Respeita a memória do teu amigo. Já te deves ter esquecido que muita da tua boa fama no Mercado da Ribeira conquistaste-a com o suor dele.”
“Mas depois de velho é que tinha de virar? Não acho normal! Até o filho é maricas!”
“Achas mesmo que ele andava com aquele outro Ricardo?”

Dionísio e Amílcar iam discutindo uma suposta homossexualidade do amigo que, apesar do seu porte alto e largo, numa tez escurecida por muitos anos a trabalhar sob o sol que visitava a lota, com ondas irreverentes e grisalhas na cabeça, e depois de muitas mulheres conquistadas durante a juventude e idade adulta, parecia ter-se entregue ao sexo oposto. Dionísio e Amílcar prosseguiram.

“Achas que se a tatuagem no braço a dizer Ricardo fosse por causa do amor pelo filho, era preciso esperar até o bichinha fazer os 18 anos?”
“O que é que queres dizer com isso?”
“Quando o filho fez os 18 anos, conhecia ele o outro Ricardo há três meses e já andavam enrabichados.”
“Mas alguma vez o viste mesmo naquilo com o outro?”
“Não, mas vi-lhe a tatuagem e sei quando ele a fez. Ora, homem que é homem, tatua no braço o pelotão a que pertenceu na Guerra, o sítio onde combateu ou ano em que regressou.”

Mas nada disso Edmundo tinha feito pela Guerra Colonial. Por essa altura, limitara-se a fazer um filho a uma mulher, antes de ir, e o segundo a uma outra, quando regressou.
As mulheres não o largavam. E os homens, ou queriam ser seus amigos, a melhor opção para eles próprios, ou invejavam-no e perdiam, desde logo, a oportunidade de conhecer muito mais mulheres. Isto porque ai de quem dissesse mal do Edmundo.

“Mas como é que ele morreu?”
“Deve ter sido de enfarte, filha.”
“Mas o tio tinha tão boa saúde...”
“Ou então foi outra doença, filha. Mas não sei. Agora, silêncio pela sua memória.”

Dizia o cunhado de Edmundo que aquele homem nunca fizera mal a ninguém. A única vez que o vira mais exaltado fora numa quinta-feira de Maio, quando se deslocou propositadamente à lota, para lhe comprar uns robalos fresquinhos.
Na Ribeira, nunca ninguém tentou roubar Edmundo, com medo que ele ficasse com os azeites e usasse o seu corpo robusto para fazer justiça com as próprias mãos. Mas naquela manhã, ao ver uma espécie de pilha galinhas a roubar os legumes da banca da dona Alzira, Edmundo saltou detrás do seu balcão, quase que desfez a banca só com o impulso que deu e correu atrás do homem.
Apanhou-o ao fundo, depois de terem dado quase meia volta ao mercado, o bandido a fugir, Edmundo a correr atrás dele. Quando o apanhou – e nisto, os olhos da sobrinha já se arregalavam de contentamento ao ouvir o relato do pai – agarrou-o pelos colarinhos, virou-o do avesso e segurou-lhe em ambas as pernas só com uma mão. Deu-lhe uma cabeçada na omoplata direita, depois outra na esquerda, e já se preparava para uma terceira, contou o cunhado.

“Ah, valente tio!”
“Se não fosse eu, minha filha, a chegar e a detê-lo, tinha desfeito o pilha galinhas.”
“E era muito bem feito!”
“Nem imaginas o que ele gritava: Se voltas a roubar os meus vizinhos eu mato-te, seu bandido. Vai trabalhar; bandido! És um bandido!”

Não fosse a capela silenciar-se e começar a recriminar aquele entusiasmo do cunhado de Edmundo, e o senhor tinha feito uma representação quase perfeita da situação.
Quem se lembra muito bem da história é Alzira, que era a dona dos legumes, motivo pelo qual o agora defunto ficara ainda mais tresloucado. Por aqueles tempos, e hoje já toda a gente desde o Martim Moniz até Alfama o sabe, Edmundo e Alzira não eram apenas companheiros de comércio no Mercado, nem trocavam apenas legumes por peixe e vice-versa. Ofereciam muito mais um ao outro.
Conta quem sabe que, inclusive a mulher do amigo Dionísio, que vendia flores na Ribeira, chegou a juntar-se aos dois e passaram, então, a ser um trio. E o mais incrível é que dizem que andavam os três felizes assim!

“Nunca eu traí a tua mãe... mas sempre quis ser como o teu tio com as mulheres”

Nos últimos anos, contudo, a história passou a ser bem diferente. As mulheres bem que puxavam por Edmundo, mas ele já não cedia. Não cedia mas parecia que fazia pior ainda: era sempre tão simpático que elas pareciam ficar ainda mais encantadas.
Diziam dele ser um homem ternurento e bondoso: em jovem muito dado aos idosos, na idade adulta muito dado às mulheres, e já a caminho da velhice muito dado aos animais. Ou seja, era um encantador de serpentes, como dizia o Amílcar, referindo-se às mulheres como seres venenosos. O maior problema dele era não lhe darem troco!
Edmundo, esse, foi o único homem lá do bairro a quem as mulheres foram capazes de dizer que ele tinha um pitbull muito meiguinho. E enquanto o coração ainda batia, ele sorria, passando a mão pelo pêlo ao animal, enquanto piscava o olho ao Ricardo amigo, quase sempre num café próximo de todos os sítios por onde o agora falecido andava.
Acabou por morrer cedo o pobre homem. E, vá-se lá saber porquê, nunca se soube o resultado concreto da autópsia.
Segundo o experiente médico, casado com uma senhora muito fina que, nos tempos de sapateiro de Edmundo (a sua profissão entre o abandono do trabalho no Mercado e a compra da retrosaria atrás da qual a sua casa fazia traseiras), lhe pediu para ele lhe pôr muitas solas nos sapatos, assim como palmilhas e outras coisas que o pudor impede de contar, a morte deu-se por causas naturais, estritamente naturais.
Para as admiradoras do cinquentão, a verdade é que devia andar naquele organismo uma doença daquelas incuráveis, fruto de tanta má vida durante tantos anos.

“Só não me aborreço a sério contigo, Alzira, porque também foste uma vítima nas mãos dele. Partia o coração a qualquer uma, este desgraçado.”

Para Deolinda, a sua primeira esposa, o pior nem foram as traições. O pior chegava agora no fim da vida do pai do seu único filho. Sem nunca dar muito pela mudança de campo do ex-marido, o que mais impressão lhe fez foi perceber que o filho permitira que Edmundo fosse para o velório com umas cuecas rotas, com o cachucho no anelar por limpar (como se fosse preciso arear a prata) e com os seus desde sempre desejados sapatos de verniz trocados.

“Se o teu pai merecia uma coisa destas, seu desleixado...”

Afonso e Teófilo, esses, abandonavam agora a capela da Senhora da Saúde, em pleno Martim Moniz. Ainda iam abalados com a morte do amigo, mas tinham alguma mágoa por nunca terem tido a sua sorte com as mulheres, o seu reconhecimento ou o seu carisma.

“Como é que um gajo com o pé chato, narigudo e de pelos nas orelhas conseguiu ter tantas mulheres?”
“Se até nós que mantemos o nosso estatuto de machos simpatizávamos e nos ríamos à grande com a sua boa disposição, imagina as mulheres cá do bairro, que olhavam para ele e viam um tipo simpático e educado, ao contrário dos gorilas com quem casaram...”
“É que até um dente lhe faltava!”
“Pois, e tinha a cicatriz no lábio superior, e o furo na orelha... já sabemos tudo isso, mas o coitado já lá está e nós ainda vamos andar por aqui mais uns tempos, se Deus quiser.”

Tuesday, October 30, 2007

Verão

“Que secura! Acho que aqueles caracóis não me caíram nada bem com a imperial...”
“A sério? Também a ti? A mim foram os tremoços. Vamos lá reclamar?”
“Reclamar agora, Sofia, que já estamos a 50 quilómetros do restaurante?”
“Pois, tens razão... mas é que nem este ventinho me está a ajudar”
“Andas impossível, Sofia. Se está sol é porque está sol e devias ter trazido um boné. Se está vento na praia, dizes que não aguentas o vendaval só porque a areia se entranha nas páginas dos teus livros. Se está vento no carro, achas que é pouco e que não te ajuda a passar a má disposição. Tu não eras assim... se cortares o cabelo, talvez se te arejem as ideias!”

Dito isto, Leonel riu-se. Sofia não. A mulher não andava a sentir-se nada bem, e agora que o Verão atingira o seu pico, estava cada vez pior. Era incapaz de dormir uma sesta, já não se babava por uma bola de Berlim cheia de creme, também já não apanhava conchas na praia e apenas se recordava das férias do Verão passado, passadas com o irmão e a cunhada, antes destes se divorciarem.
Sentia-se como uma família após um piquenique realizado sobre uma toalha vermelha e branca aos quadrados, a meio da tarde, a descansar à sombra. Assim estava Sofia, ensimesmada, uma sombra dela própria.
30 por cento dos casais divorciam-se após as férias”, leu no jornal, enquanto o marido conduzia. E tremeu.
Estava num profundo dilema. Não sabia se devia desconfiar de Leonel, que passava mais tempo na pesca do que em anos anteriores, ou se devia contar-lhe, desde logo, que estava grávida. Mas como? Ele andava muito distante e ainda não lhe dera abertura para uma conversa dessas.

“Este ano ainda não vimos cinema ao ar livre...”
“Sabes que estão cá os meus primos de França e que temos de lhes dar atenção”
“Esse teu primo mais novo também se vai divorciar?”
“Parece que sim. Diz que não se está a dar lá muito bem com a francesa. Ainda bem que ela não veio, não me apetecia nada aturá-la”

Sofia descalçou as sandálias e arremessou-as para o banco de trás do carro, uma para cada lado, aterrando cada uma numa ponta da enorme toalha de praia que se estendia amarfanhada nos estofos. Por baixo, jornais semanais com as páginas já desordenadas, revistas cor-de-rosa com as quais Leonel embirrava, uma loção pós exposição solar, uma garrafa de água vazia, algumas canetas perdidas, um balde do sobrinho de Leonel e areia, muita areia da praia.

“Estou grávida!”
E, ao dizê-lo, Sofia tremeu novamente, temendo a reacção de Leonel. O silêncio reinou durante alguns segundos. Então, ele avançou: “dizes isso só porque estás mal disposta”.
Sofia receou que o marido não concordasse com a gravidez naquela época das suas vidas: “não estás contente, eu sei...”.
“Mas tens a certeza, fizeste o teste?”
A esposa sussurrou um “tenho” abafado, tal e qual aquele calor abafado do Verão. Depois, Leonel começou a buzinar ininterruptamente, no meio de uma estrada perdida, no Alentejo.
“Estás louco? Pára com isso!”
Desviou o carro para o descampado e começou, loucamente, a andar com a viatura às voltas, num misto de piões e carrossel. Desviou-o porque, na verdade, estava demasiado contente e jamais pensara em separar-se da sua esposa.
Só essa felicidade do marido impediu Sofia de vomitar, embora só ao final de cinco minutos Leonel tenha parado de rodopiar o carro e de gritar “yupi, yupi”.

Tuesday, October 23, 2007

Primavera

Com um beijo entrega-se ao Estio
Com uma espiga crava-lhe o peito
Um pingo de chuva a afastar o frio
Um raio de sol a recolher-se ao leito

Gémeos, Touro e Carneiro
Dois chifrudos e um a dobrar
Paixões e namoros vêm primeiro
Depois alergias e pólen para espirrar

A prima Vera de perna ao léu
Numa sexta-feira considerada santa
Ao fundo, uma mulher coberta com véu
Na esquina, um homem cego canta

Antes, andorinhas, papoilas e borboletas
Um balcão com amêndoas, ovos e folares
Depois, bifanas, copos e rezas santas
Eis as preces das festas populares

A Primavera, risonha estação
Em Aleluia traz-nos os saldos
No fim, foge piscando o olho ao marrão
Para quem Santo António é exames e não fados

Tuesday, October 16, 2007

Outono

Hoje é Outono e estão todos juntos, de novo no mesmo dia, como há 10 anos. Há uma década atrás, o Outono marcava o início das aulas de alguns petizes. Já para os mais velhos, estudantes universitários, aquela estação do ano delimitava os seus períodos de férias, sem que sequer olhassem para os horários que teriam na faculdade.
Num ano, chegaram a Santa Apolónia (que também é uma estação) num dos primeiros dias de Outono. Sobre os carris, repousavam folhas de árvore amarelecidas e manchas de água-pé que algum garrafão de revestimento branco deixara escapar. Por perto, assavam-se castanhas no átrio central do apeadeiro e vislumbrava-se a boina do assador de castanhas, mais castanha do que os troncos de árvore encarquilhados.
No ano seguinte, exactamente no mesmo dia em que haviam chegado, decidiram partir. Esqueceram-se, propositadamente, da rentrée política, ignoraram Fátima e as suas procissões, desprezaram os jogos de futebol da Liga dos Campeões, recusaram-se a comprar cadernos novos e aproveitaram o estado dos seus orçamentos para viajar, em vez de ficarem a fazer contas ao Orçamento de Estado.
6x3=18… 18… 18 é… uma dúzia e meia… uma dúzia e meia é… é melhor fazerem as contas!
Apesar de a época ser propícia e fértil para determinados frutos, não levaram marmelos porque o que lhes interessava era o produto final e, para marmelos, já bastava cada um deles. Dióspiros também ficaram para trás, porque se desfaziam.
“Mas leva só uma caixa de Benuron, meu filho…”
Como gripes e constipações são para os mais velhos, só um cumpriu o desejo da mãe.
No meio de um dia curto e de uma noite longa em terra de fiordes, lá se foi a lembrança do Benuron, a mudança de hora a que, pomposamente, se chama fuso horário, a apropriada foto a preto e branco para condizer com o Outono, a nostalgia e o frio e o vento.
Era Outono, e ora toca de abrir uma garrafa de vinho, ali mesmo na estação (de comboios, claro está), abrir as latas de atum, arremessar os chapéus-de-chuva para qualquer lado e comprar umas castanhas assadas. Sim, por lá também se vendiam castanhas assadas.
Um dos amigos olhou para uma delas, por sinal mais castanha do que qualquer outra castanha e acariciou-a. Não, não era mais castanha por ser da cor castanha, era mais castanha mesmo castanha, uma castanha mulher, pura, lisa, de pele macia e imaculada, que o rapaz considerou perfeita para guardar como recordação.
Outro dos jovens disse ter nas suas mãos uma castanha redonda e despida, como uma bola de futebol bem velha, descosida, com a sua câmara-de-ar a pedir liberdade ao mundo.
Outro houve que pegou na sua castanha aberta, qual pala sobre o olho sem olhar para o mundo, um Camões feminino, um poeta transformado em fruto para assar ou cozer.
Depois, rindo-se todos dos seus disparates, brindaram às vindimas que se processavam lá longe, em Portugal, fizeram um tchin-tchin ao Outono, às suas ainda férias e… ao sol. Porque poderia ser Verão sempre que eles quisessem!

Tuesday, October 02, 2007

Inverno

“Você não vê por onde anda?”
“Quem é que o manda andar com a pastinha na cabeça?”
“Eu circulava pela direita, como manda a lei”
“Eu sou uma pessoa, não sou um carro”
“Pedro?”
“João? ‘Tás bom, pá?”

Pedro e João, agora senhores Medeiros e Fernandes, tinham esbarrado acidentalmente um contra o outro, num dia cinzento, de chuva intensa e vento forte. A Praça da Figueira tinha quase mais vendedores de guarda-chuvas do que pessoas.
É curioso como esses vendedores aparecem nestes dias, como uma espécie de enviados do São Pedro, que procura assim a sua redenção perante os terrenos.
Serão esses homens os mesmos que fazem de amoladores da parte da manhã, anunciando a chuva, e, ao final da tarde, se transformam em vendedores de guarda-chuvas?

Pedro e João, ainda antes de se terem apercebido que se conheciam, perderam as estribeiras e já planeavam tirar as respectivas gravatas e casacos para poderem lutar melhor, num misto de judocas decadentes com dois animais selvagens a defenderem o seu território.
Como é possível que, numa praça tão grande mas com tão pouca gente (grande parte dos transeuntes tinham corrido para o metropolitano ou feito dos cafés o seu esconderijo contra a intempérie), aqueles dois tivessem embatido um contra o outro?

“Estás mais gordo”, comentou João.
“E tu mais careca”, assinalou Pedro.
“São as preocupações... um divórcio, três filhos...”, explicou João.
“E eu agora almoço na cantina do Hotel. Depois, tenho jantares fartos... a minha mulher só trabalha em casa”, justificou Pedro, sorrindo.
“Não consegues fazer dieta?”, perguntou João.
“Para quê? Vamos todos morrer!”, assinalou Pedro.

Também assim morreu a conversa daqueles que tinham sido os melhores amigos de infância um do outro, e que não se viam há mais de dez anos.

Monday, July 30, 2007

Camilo Castelo Branco explica

“Também Teresa dera pela ausência do primo, e fingiu que o ia procurar, resolução de que o velho gostou muito. Desceu ela ao jardim, correu à porta onde a esperava Simão, abriu-a, e, com a voz cortada pela ansiedade, apenas disse:
– Vai-te embora; vem amanhã às mesmas horas... Vai, vai!”
Posto isto, Simão Sabrosa congelou o Amor de Perdição que tinha pelo Sport Lisboa e Benfica e foi dedicar-se a uma outra paixoneta, agora pelo Atlético de Madrid. Sem voltar amanhã, à mesma hora...

Sunday, March 11, 2007

Na barra do Tribunal

Alzira, Deolinda e Genoveva caminham para os sessenta anos. São donas de casa e já só fazem um ou outro trabalho de costura, actividade que desempenharam durante anos a fio, enquanto os maridos iam para os seus trabalhos: um na construção civil, outro era dono de um café, e havia um que era taxista.
Estas três senhoras, actualmente com poucos trabalhos para fazer, excluindo uma ou outra bainha ajeitada a uma vizinha ou familiar mais chegada, ocupam o tempo de que dispõem a comentar a vida dos outros.
Há uns anos, este trio, juntamente com as suas vizinhas de Alfama, juntava-se perto das Escadinhas de São Miguel e ali ficava a conversar e a produzir diatribes horas a fio, enquanto os trabalhos de costura eram deixados para depois. Nos tempos que correm, tudo é diferente. A vida dos outros é seguida via televisão, como se os ditos famosos que aparecem no grande ecrã fizessem parte da família dessas pessoas, ou então em sessões de julgamento nos mais diversos tribunais de Lisboa.
De há uns dois anos para cá, Alzira, Deolinda e Genoveva vão, pelo menos, três vezes por semana ao Tribunal da Boa Hora, assistir aos julgamentos que ali decorrem, cujos intervenientes são pessoas suas desconhecidas. No entanto, findas as audiências, aquelas senhoras têm sempre uma opinião para dar, sem cobrarem qualquer preço: ou que o juiz avaliou mal aquele caso; ou que se o homem queimou a mulher foi porque tinha motivos; ou que a mulher apenas quis o divórcio porque estava farta de viver com um bêbado; ou que a criança deve ficar sob a custódia do pai e da madrasta; ou que aquele homem é pedófilo; ou que o tal engenheiro é um violador compulsivo.
Sobre todos estes casos elas têm algo a dizer, discordando muitas vezes dos juizes: “é uma injustiça”, clamam nessas alturas, como se aqueles homens de capa negra estivessem a condenar injustamente alguém das suas famílias ou a ilibar criminosos que elas juram serem culpados. E é curioso ver como se multiplicam os comentários no final de cada sessão, como se criam pequenas assembleias à porta do Tribunal da Boa Hora, com outras senhoras e senhores de outros bairros típicos de Lisboa, para julgarem os pecados públicos dos arguidos. Como se não tivessem telhados feitos daquela substância sólida, transparente e frágil, obtida através da fusão de sílica com potassa ou soda, a que habitualmente se chama vidro.
Mais curiosos são os diálogos de Alzira, Deolinda e Genoveva no caminho de regresso ao bairro de Alfama. A meio do percurso, já esqueceram os casos daquele dia e pensam novamente nos vizinhos daquelas ruas esconsas onde habitam.
Genoveva vira-se para as amigas e diz que “quem precisava de ser preso era o Júlio, que anda sempre a bater no pobre do filho mais novo”. Deolinda contrapõe, em defesa de Júlio, que por acaso até já foi seu amante, que “devia dar-lhe com mais força, porque o raio do miúdo é um traquinas de primeira”. E é Alzira quem conclui, desempatando aquela contenda: “é uma barbaridade bater na cabeça do Arturzinho com uma colher de pau. Ainda por cima, o miúdo anda estudar. Se um dia ele tirar más notas, depois admirem-se e digam que não sabem por que é que foi”.

Wednesday, February 07, 2007

Um tapete voador

A dona Alda é a empregada doméstica do Francisco. Foi empregada da família Brandão desde sempre.
Agora que o Francisco cresceu e já vive sozinho, manteve-se fiel à dona Alda, que tem um filho dois anos mais novo. O Francisco ensina português, é um jovem professor, enquanto o Augusto, filho da respeitável senhora, é engenheiro civil.
Um dia destes, enquanto limpava a secretária onde o docente deixa toda a sua papelada, deu de caras com um texto que o próprio tinha escrito, a propósito de um exercício que pensara propor aos seus alunos. A dona Alda nunca foi uma pessoa intrometida, mas nesse dia não resistiu à tentação e acabou mesmo por ler.
“Do meu tapete voador, vejo tudo o que quiser e fecho os olhos a tudo quanto me apetecer. No meu tapete voador, levo Yerevan, a Arménia e todo o seu povo, mas fecho os olhos ao vermelho e branco, à U.R.S.S. e a um país novo. Vejo mais longe a Albânia, Tirana e a Vânia, mas não esqueço Atenas nem a Suzana com o seu blusão de penas.
No meu tapete voador, parto até Belgrado, visito o túmulo de Tito, entro no Cibercafé e falo com o Eduardo. Caminho do forte até à estação, e é tal a sorte que o comboio está mesmo ali à mão.
Do meu tapete voador, recordo o atravessar dum país. Parece que agora são seis, foi assim que alguém quis. E outra vez a história do Kosovo, que volta-não-volta surge, como se fosse um tema novo.
Quero ir ao Japão sem ser de avião, mas com o meu tapete voador não é possível. Meto-me então no comboio a vapor, talvez seja mais exequível. Sei que é mesmo necessário fazer o trans-siberiano, mas cheira-me que ainda não é este ano.
Não sei se é falta de tempo ou de espaço; é falta de dinheiro, essa espécie de ameaço.
Agarro no meu tapete voador, que agora arrumo. Já sonhei tudo por hoje: sonhei viagens, sonhei consumo”.
A dona Alda sentiu-se orgulhosa do menino Francisco, quase como se ele fosse seu filho. Como se ele ainda não fosse um formador de consciências, como se nunca tivesse crescido. Continuou a limpar e a arrumar, agora mais feliz, mais contente por ali estar.

Tuesday, February 06, 2007

Tudo por causa do olfacto

Afonso estava numa tasca com o seu primo Miguel, que ia comendo e bebendo alegremente. Afonso, já farto daquele cheiro a tremoços e a cerveja, incitou o primo a irem dar um passeio, sem rumo definido.
“Deves estar a brincar comigo. Os pneus do teu carro cheiram a borracha de terceira categoria, além do raio do cheiro a madeira que infestou o habitáculo do veículo. Já te disse que isso de andares com a Vanessa, noite sim noite não, a comprar o mobiliário todo naquela multinacional sueca, e depois deixares as caixas no carro, não é boa ideia”, transmitiu Miguel.
Afonso sorriu, retorquindo: “vá lá, tenho de pôr gasolina e assim aproveitas para cheirá-la, como tanto gostas. É que aproveitas mesmo, porque hoje vou encher o depósito”.
Miguel esboçou finalmente um sorriso e, quando Afonso estava a atestar o depósito do carro, virou-se para o primo, repentinamente, desafiando-o: “vamos andar de comboio, vamos procurar aquele cheiro a carril de que ambos tanto gostamos. Nem que seja só até ao Entroncamento”.
Acabaram por ir. Partiram de Santa Apolónia a meio da tarde, já com o bilhete de ida e volta comprado, e passaram as viagens na carruagem bar, com o cheiro das bifanas, do gin tónico e dos amendoins bem presentes. Quase tão fortes como o cheiro que adivinhavam vir do exterior da carruagem: do rio Tejo, das flores ainda vivas, do alcatrão mais ou menos cuidado, do fumo dos carros e das fábricas.

Thursday, February 01, 2007

Viver à conta do pincel

João Santos apresentou ontem a sua primeira exposição de pintura a solo, sem a presença dos quadros dos amigos do costume, Pedro Soares e Fátima Rodrigues.
Os presentes encontraram-no com um pincel atrás da orelha, qual merceeiro com o lápis, dando as boas vindas aos visitantes. Apesar da calvície em estado bastante avançado para a sua idade, e da pêra que não disfarça o seu ar de artista meio enlouquecido, João Santos caminha para os 50 anos com um ar quase tão jovem como a sua filha adolescente, a Joana.
Na galeria onde expôs as suas obras, proliferavam relatos de toda a sua actividade artística ao longo da vida. Lembravam as suas poesias na adolescência, aquelas que lhe saíam nos intervalos dos treinos e campeonatos de luta livre, para os quais precisava de fazer dietas rigorosíssimas, sob pena de ser excluído das competições, por peso a mais. Hoje, olha-se para a sua barriga protuberante e percebe-se o motivo daquele esforço.
Relatavam ainda a sua entrada na Faculdade de Direito e consequente desistência, no pós 25 de Abril de 1974. Nesse Período Revolucionário Em Curso, apostou antes numa licenciatura em Educação Física, para contrariar os pais. Foi também recordada a sua dedicação aos cartoons que fazia para diversos jornais e uma iniciação nas danças de salão, para conhecer ainda mais miúdas.
Terminaram aquela narração referindo a sua desistência do ensino do desporto aos jovens, devido à sua aposta total na pintura, que já lhe permite ganhar a vida desse modo, o que era pouco expectável em Portugal.
Quando João repara, enfim, que aquela pequena multidão já leu tudo o que tinha a ler e que está, finalmente, centrada na sua pessoa, agarra no pincel que tem sobre a orelha, puxa-o, molha-o na tinta vermelha e desata a salpicar os convidados, como forma de agradecimento pela sua presença.

Sunday, January 14, 2007

O malandrão

Miguel é um malandrão à antiga, daqueles que ainda usa brilhantina e tudo o resto que é suposto um malandrão usar. Já ninguém sabe ao certo o que ele fez durante a sua vida profissional activa, mas quase todos sabem com quem o vêem.
Este homem de idade avançada costuma andar pela zona do Rossio, Rua Augusta, Rua dos Correeiros, e vai passando pelos cafés, pelas retrosarias, pelas lojas de roupa, ouvindo os cumprimentos que soam à sua passagem, como se fosse o Presidente da República: “Bom dia, sr. Miguel”, “olá, sr. Miguel”, “só agora, Miguel?!”.
Quando passa finalmente pela Rua da Conceição, encontra todos os dias a sua mulher, na paragem do 28, conforme combinado. Esperam tranquilamente pela chegada do eléctrico e, à sua paragem, sobem e cumprimentam o sr. Fonseca, o condutor. Sentam-se e seguem até à Graça, onde dão o passeio do costume, sem que esse hábito se lhes depare como algo fastidioso.
A dona Elvira costuma dizer que o senhor Miguel – um malandrão também pode ser um senhor – foi sempre um grande amante. Ninguém percebe bem o que ela pretende dizer com isso, até porque meia Lisboa, onde cabe toda a gente sábia e antiga da capital, conhece bem a fama do Miguelão.
Também a conhece a sua esposa, a dona Elvira, uma raposa velha e cheia de sabedoria, já octogenária e fumadora convicta de cachimbo: “mas o que é um amante senão aquele que ama, aquele que é companheiro e camarada?”, pergunta, embora saiba antecipadamente a resposta.
A verdade é que o senhor Miguel, apesar de ainda ter a fama de malandrão, foi também um sapateiro à antiga, bastante competente e reconhecido por todos os bancários e advogados da baixa pombalina, muitos deles já desaparecidos deste mundo. E pese embora as suas escapadelas extraconjugais, foi sempre um adepto fanático e verdadeiramente dedicado a uma só pessoa: a sua mulher!

Monday, January 08, 2007

Em torno da plasticina

Com um pedaço de plasticina nas mãos, todos os sonhos são possíveis. Assim o pensa aquele homem de pele gasta pelos anos e pelo cansaço de uma vida de trabalho. Pele enrugada, barba cerrada, olhos encavados e um olhar distante, apesar de feliz pela certeza de ter cumprido parte da sua missão enquanto ser humano. Homem de família, sério, diante da televisão sobre aquela mesa de madeira que lhe foi deixada pelos seus pais, com o aparelho ligado sem que ele dê por isso, enquanto vai mexendo e remexendo a plasticina, que se lhe vai enfiando unhas adentro.
O senhor Herlander foi um conhecido funcionário da maior casa de leilões de Lisboa, situada em pleno Bairro Alto, onde outrora se encontravam os principais jornais do país. O seu sonho sempre fora licitar algo bem diferente do que habitualmente fazia com os quadros ou as porcelanas antigas, naquele espaço onde proliferava o cheiro a óleo de cedro.
Várias vezes o senhor Herlander disse aos seus filhos, enquanto jantavam, que o que gostaria mesmo era de leiloar molduras de metal, como as que o senhor Arlindo fazia na sua juventude. Ou então, e este era o seu verdadeiro sonho, poder dizer: bife com batatas fritas por dez escudos uma; bife com batatas fritas por dez escudos duas; bife com batatas fritas por dez escudos arrematado ali pelo senhor Pedro, acompanhado pelo seu advogado, o doutor Lobo.
O filho mais novo questionava-o sempre por que motivo não leiloar antes o bolonhês de atum ou o polvo com batatas cozidas. “Não foi com esses pratos que sonhei proferir aquela lengalenga, meu filho”, explicava-se ele.
De facto, tornara-se complicado olhar para o senhor Herlander, ao fim de tantos anos naquela casa, e saber que nunca poderia leiloar os objectos com que sempre sonhou, além de se perceber que os valores que lançava para o ar já surgiam de forma quase mecânica e com pouco brilho no olhar.
Sempre consciente de tal situação, aquele homem passava os dias a pensar quantos mais cabelos brancos lhe iriam nascer devido àquele trabalho repetitivo e já desinteressante, embora prosseguisse a sua vida profissional de forma estóica.
O que o senhor Herlander nunca escondeu foi que da plasticina jamais o privariam. Porque essa era a sua maior fonte de sonhos, com ou sem televisão ligada.

Saturday, January 06, 2007

As Caixas

Júlio abriu a caixa na qual, em tempos, o senhor Lúcio guardou os seus alfinetes da época em que foi alfaiate em Campo de Ourique. Na caixa que foi outrora do seu avô, Júlio guarda parte dos seus bens mais preciosos: quatro árbitros de Subbuteo e um mini-globo, que se tornou numa célebre Taça do Mundo. O garoto sempre disse ao avô, enquanto pôde contar com a sua inestimável presença, que aqueles objectos o ajudavam a sonhar, tal como o ajudava o seu triciclo cuidadosamente artilhado como se de uma ambulância se tratasse, ou mesmo os bonecos de trapos que utilizava para contar as suas histórias emergentes de filho único.
Júlio começou desde muito cedo a realizar campeonatos de Subbuteo, um jogo de futebol praticado com os dedos a impelirem os bonecos contra a bola, abrindo desde logo todas as caixas compartimentadas no seu pensamento.
Havia uma caixa com um anel Swarowski, da zona do Tirol, na Áustria, que o seu pai, Humberto, oferecera à sua mãe, Deolinda. Essa pequena caixa fazia de tribuna para os presidentes dos clubes ou selecções e ficava bem de frente para o centro do terreno, representado por um pano verde macio que se entendia sobre a alcatifa, bem superior à influência dos poderosos ácaros.
Uma outra caixa, transparente, foi-lhe oferecida pelo pirata do Filipe, agora a viver e a trabalhar em Barcelona, o único amigo com quem organizava campeonatos e competições de todas as espécies, e com quem sonhava mais caminhos futuros para além do jogo.
Havia depois uma caixa negra, não de um avião, mas para guardar a caneta mais valiosa que o avô de Júlio tivera. Esse objecto rectangular simulava ser uma ambulância que transportava os atletas lesionados para a enfermaria, onde eram submetidos desde logo à magia e aos créditos inabaláveis da cola UHU.
Havia ainda uma outra caixa, bem colorida, em tons de vermelho e amarelo, com motivos e letras espanholas, que fazia de suporte às bancadas superiores, a si encostadas. Esta caixa, no entanto, olhando do chão para a plateia, mais acima, tornava-se invisível. Os dois amigos explicavam esta situação com humor e ironia: Espanha não existe, é um aglomerado de províncias, pelo que a caixa também não se pode ver!
Outra caixa, a do chá, construída em latão há já muitas décadas, pela mesma ordem de ideias que presidia à colocação estratégica da caixa espanhola, era o suporte invisível das bancadas na lateral direita do estádio, por detrás de uma das balizas. A justificação dos petizes para a deixarem escondida era simples: quem é que trouxera primeiro o chá para a Europa? Os portugueses ou os ingleses?
A arte da construção dos estádios, tarefa sempre antecedente à colocação do terreno de jogo, carecia de um poderoso espírito arquitectónico, que Filipe e Júlio desenvolviam com grande perícia. A engenharia também estava bastante presente, motivo pelo qual procuravam sempre as melhores caixas para fazer de alicerce às bancadas. Jamais poderiam permitir que houvesse uma derrocada e consequentes ferimentos entre os adeptos, fiéis seguidores daquele jogo.
Mas havia uma outra caixa, esta de bombons, que eles reconheciam facilmente, mesmo depois de lhe terem retirado o rótulo. Chamavam-na caixa mágica devido a um dia, sem se lembrarem bem porquê, ter permanecido no seu interior um pedaço de tecido vermelho. Os jovens, sempre bem humorados, confessavam não saber se aquela cor quente e mágica os remetia mais para o ilusionista Luís de Matos ou para a magia do pano de cor vibrante a esvoaçar nas aberturas dos Campeonatos do Mundo.
Um dia, enquanto montavam um novo estádio, provavelmente pela milésima vez, o pequeno Júlio virou-se para o seu companheiro Filipe e perguntou-lhe se aquele lenço vermelho não ficaria bem ao artista Tony de Matos. Filipe sorriu e apontou para a caixa de madeira vetusta e fechada, onde se encontrava a correspondência amorosa trocada pelos avós do amigo, e comentou, recordando talvez o maior êxito do cantor romântico português: “cartas de amor, quem as não tem?!”.

Friday, January 05, 2007

O Caleidoscópio

José e Manuela passeavam várias vezes no jardim do Campo Grande, já lá vão 30 anos. Nessa altura, os boatos de que os jardins são para os velhos não tinham eco, nem sequer existiam.
Existia sim, além de jovens casais que aproveitavam aquele espaço verde para passear ou para navegar naqueles pequenos barcos a remos, uns carros a pedais que davam voltas e voltas ao jardim, ininterruptamente, conduzidos por crianças que, mesmo tendo cara de miúdos, já eram muito rodadas naquelas andanças.
Pedalavam o mais que podiam, com os joelhos quase sempre a bater um no outro, como que vindos dos ressaltos no tecto do veículo, presas ao volante com toda a determinação que tinham. E quando precisavam de travar, lançavam-se àquela alavanca do seu lado direito e puxavam-na com toda a pujança que possuíam.
Passavam pelo Centro Comercial Caleidoscópio, estrategicamente colocado à beira lago, e ficavam quase desclassificados, pois distraíam-se a procurar se o Bambi ainda estaria em exibição no cinema situado no piso de baixo daquele espaço comercial.
José e Manuela iam caminhando, felizes pela paz que lhes conferia o amor que sentiam um pelo outro, comentando aquela agitação que os encantava, planeando levar, um dia, os seus filhos àquele espaço tranquilo da sua cidade natal.
Estavam ainda longe de pensar descobrir tamanho encantamento até ao dia em que visitaram Paris e o Museu do Brinquedo e das Novas Tecnologias. Lá, espreitaram deliciados através de um caleidoscópio e viram muito mais do que a imaginação lhes permitia. Muito mais do que os simples espelhos inclinados, paralelos a uma determinada direcção, com os seus pequenos fragmentos de vidro colorido.
Chegaram a ver o filho que ainda não tinham a pedalar esbaforido naqueles carros a pedais. Conseguiram ver o lago do Campo Grande a ser transportado junto com o Centro Comercial Caleidoscópio para debaixo da Torre Eiffel. E à sua volta, tornando ainda mais viva aquela obra de Gustav, viram raparigas a fugir racionalmente dentro dos carros, enquanto os rapazes pedalavam emocional e incessantemente atrás delas, na cidade luz, mas também do amor e dos sonhos.