Saturday, January 06, 2007

As Caixas

Júlio abriu a caixa na qual, em tempos, o senhor Lúcio guardou os seus alfinetes da época em que foi alfaiate em Campo de Ourique. Na caixa que foi outrora do seu avô, Júlio guarda parte dos seus bens mais preciosos: quatro árbitros de Subbuteo e um mini-globo, que se tornou numa célebre Taça do Mundo. O garoto sempre disse ao avô, enquanto pôde contar com a sua inestimável presença, que aqueles objectos o ajudavam a sonhar, tal como o ajudava o seu triciclo cuidadosamente artilhado como se de uma ambulância se tratasse, ou mesmo os bonecos de trapos que utilizava para contar as suas histórias emergentes de filho único.
Júlio começou desde muito cedo a realizar campeonatos de Subbuteo, um jogo de futebol praticado com os dedos a impelirem os bonecos contra a bola, abrindo desde logo todas as caixas compartimentadas no seu pensamento.
Havia uma caixa com um anel Swarowski, da zona do Tirol, na Áustria, que o seu pai, Humberto, oferecera à sua mãe, Deolinda. Essa pequena caixa fazia de tribuna para os presidentes dos clubes ou selecções e ficava bem de frente para o centro do terreno, representado por um pano verde macio que se entendia sobre a alcatifa, bem superior à influência dos poderosos ácaros.
Uma outra caixa, transparente, foi-lhe oferecida pelo pirata do Filipe, agora a viver e a trabalhar em Barcelona, o único amigo com quem organizava campeonatos e competições de todas as espécies, e com quem sonhava mais caminhos futuros para além do jogo.
Havia depois uma caixa negra, não de um avião, mas para guardar a caneta mais valiosa que o avô de Júlio tivera. Esse objecto rectangular simulava ser uma ambulância que transportava os atletas lesionados para a enfermaria, onde eram submetidos desde logo à magia e aos créditos inabaláveis da cola UHU.
Havia ainda uma outra caixa, bem colorida, em tons de vermelho e amarelo, com motivos e letras espanholas, que fazia de suporte às bancadas superiores, a si encostadas. Esta caixa, no entanto, olhando do chão para a plateia, mais acima, tornava-se invisível. Os dois amigos explicavam esta situação com humor e ironia: Espanha não existe, é um aglomerado de províncias, pelo que a caixa também não se pode ver!
Outra caixa, a do chá, construída em latão há já muitas décadas, pela mesma ordem de ideias que presidia à colocação estratégica da caixa espanhola, era o suporte invisível das bancadas na lateral direita do estádio, por detrás de uma das balizas. A justificação dos petizes para a deixarem escondida era simples: quem é que trouxera primeiro o chá para a Europa? Os portugueses ou os ingleses?
A arte da construção dos estádios, tarefa sempre antecedente à colocação do terreno de jogo, carecia de um poderoso espírito arquitectónico, que Filipe e Júlio desenvolviam com grande perícia. A engenharia também estava bastante presente, motivo pelo qual procuravam sempre as melhores caixas para fazer de alicerce às bancadas. Jamais poderiam permitir que houvesse uma derrocada e consequentes ferimentos entre os adeptos, fiéis seguidores daquele jogo.
Mas havia uma outra caixa, esta de bombons, que eles reconheciam facilmente, mesmo depois de lhe terem retirado o rótulo. Chamavam-na caixa mágica devido a um dia, sem se lembrarem bem porquê, ter permanecido no seu interior um pedaço de tecido vermelho. Os jovens, sempre bem humorados, confessavam não saber se aquela cor quente e mágica os remetia mais para o ilusionista Luís de Matos ou para a magia do pano de cor vibrante a esvoaçar nas aberturas dos Campeonatos do Mundo.
Um dia, enquanto montavam um novo estádio, provavelmente pela milésima vez, o pequeno Júlio virou-se para o seu companheiro Filipe e perguntou-lhe se aquele lenço vermelho não ficaria bem ao artista Tony de Matos. Filipe sorriu e apontou para a caixa de madeira vetusta e fechada, onde se encontrava a correspondência amorosa trocada pelos avós do amigo, e comentou, recordando talvez o maior êxito do cantor romântico português: “cartas de amor, quem as não tem?!”.

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