Monday, January 08, 2007

Em torno da plasticina

Com um pedaço de plasticina nas mãos, todos os sonhos são possíveis. Assim o pensa aquele homem de pele gasta pelos anos e pelo cansaço de uma vida de trabalho. Pele enrugada, barba cerrada, olhos encavados e um olhar distante, apesar de feliz pela certeza de ter cumprido parte da sua missão enquanto ser humano. Homem de família, sério, diante da televisão sobre aquela mesa de madeira que lhe foi deixada pelos seus pais, com o aparelho ligado sem que ele dê por isso, enquanto vai mexendo e remexendo a plasticina, que se lhe vai enfiando unhas adentro.
O senhor Herlander foi um conhecido funcionário da maior casa de leilões de Lisboa, situada em pleno Bairro Alto, onde outrora se encontravam os principais jornais do país. O seu sonho sempre fora licitar algo bem diferente do que habitualmente fazia com os quadros ou as porcelanas antigas, naquele espaço onde proliferava o cheiro a óleo de cedro.
Várias vezes o senhor Herlander disse aos seus filhos, enquanto jantavam, que o que gostaria mesmo era de leiloar molduras de metal, como as que o senhor Arlindo fazia na sua juventude. Ou então, e este era o seu verdadeiro sonho, poder dizer: bife com batatas fritas por dez escudos uma; bife com batatas fritas por dez escudos duas; bife com batatas fritas por dez escudos arrematado ali pelo senhor Pedro, acompanhado pelo seu advogado, o doutor Lobo.
O filho mais novo questionava-o sempre por que motivo não leiloar antes o bolonhês de atum ou o polvo com batatas cozidas. “Não foi com esses pratos que sonhei proferir aquela lengalenga, meu filho”, explicava-se ele.
De facto, tornara-se complicado olhar para o senhor Herlander, ao fim de tantos anos naquela casa, e saber que nunca poderia leiloar os objectos com que sempre sonhou, além de se perceber que os valores que lançava para o ar já surgiam de forma quase mecânica e com pouco brilho no olhar.
Sempre consciente de tal situação, aquele homem passava os dias a pensar quantos mais cabelos brancos lhe iriam nascer devido àquele trabalho repetitivo e já desinteressante, embora prosseguisse a sua vida profissional de forma estóica.
O que o senhor Herlander nunca escondeu foi que da plasticina jamais o privariam. Porque essa era a sua maior fonte de sonhos, com ou sem televisão ligada.

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