Sunday, January 14, 2007

O malandrão

Miguel é um malandrão à antiga, daqueles que ainda usa brilhantina e tudo o resto que é suposto um malandrão usar. Já ninguém sabe ao certo o que ele fez durante a sua vida profissional activa, mas quase todos sabem com quem o vêem.
Este homem de idade avançada costuma andar pela zona do Rossio, Rua Augusta, Rua dos Correeiros, e vai passando pelos cafés, pelas retrosarias, pelas lojas de roupa, ouvindo os cumprimentos que soam à sua passagem, como se fosse o Presidente da República: “Bom dia, sr. Miguel”, “olá, sr. Miguel”, “só agora, Miguel?!”.
Quando passa finalmente pela Rua da Conceição, encontra todos os dias a sua mulher, na paragem do 28, conforme combinado. Esperam tranquilamente pela chegada do eléctrico e, à sua paragem, sobem e cumprimentam o sr. Fonseca, o condutor. Sentam-se e seguem até à Graça, onde dão o passeio do costume, sem que esse hábito se lhes depare como algo fastidioso.
A dona Elvira costuma dizer que o senhor Miguel – um malandrão também pode ser um senhor – foi sempre um grande amante. Ninguém percebe bem o que ela pretende dizer com isso, até porque meia Lisboa, onde cabe toda a gente sábia e antiga da capital, conhece bem a fama do Miguelão.
Também a conhece a sua esposa, a dona Elvira, uma raposa velha e cheia de sabedoria, já octogenária e fumadora convicta de cachimbo: “mas o que é um amante senão aquele que ama, aquele que é companheiro e camarada?”, pergunta, embora saiba antecipadamente a resposta.
A verdade é que o senhor Miguel, apesar de ainda ter a fama de malandrão, foi também um sapateiro à antiga, bastante competente e reconhecido por todos os bancários e advogados da baixa pombalina, muitos deles já desaparecidos deste mundo. E pese embora as suas escapadelas extraconjugais, foi sempre um adepto fanático e verdadeiramente dedicado a uma só pessoa: a sua mulher!

Monday, January 08, 2007

Em torno da plasticina

Com um pedaço de plasticina nas mãos, todos os sonhos são possíveis. Assim o pensa aquele homem de pele gasta pelos anos e pelo cansaço de uma vida de trabalho. Pele enrugada, barba cerrada, olhos encavados e um olhar distante, apesar de feliz pela certeza de ter cumprido parte da sua missão enquanto ser humano. Homem de família, sério, diante da televisão sobre aquela mesa de madeira que lhe foi deixada pelos seus pais, com o aparelho ligado sem que ele dê por isso, enquanto vai mexendo e remexendo a plasticina, que se lhe vai enfiando unhas adentro.
O senhor Herlander foi um conhecido funcionário da maior casa de leilões de Lisboa, situada em pleno Bairro Alto, onde outrora se encontravam os principais jornais do país. O seu sonho sempre fora licitar algo bem diferente do que habitualmente fazia com os quadros ou as porcelanas antigas, naquele espaço onde proliferava o cheiro a óleo de cedro.
Várias vezes o senhor Herlander disse aos seus filhos, enquanto jantavam, que o que gostaria mesmo era de leiloar molduras de metal, como as que o senhor Arlindo fazia na sua juventude. Ou então, e este era o seu verdadeiro sonho, poder dizer: bife com batatas fritas por dez escudos uma; bife com batatas fritas por dez escudos duas; bife com batatas fritas por dez escudos arrematado ali pelo senhor Pedro, acompanhado pelo seu advogado, o doutor Lobo.
O filho mais novo questionava-o sempre por que motivo não leiloar antes o bolonhês de atum ou o polvo com batatas cozidas. “Não foi com esses pratos que sonhei proferir aquela lengalenga, meu filho”, explicava-se ele.
De facto, tornara-se complicado olhar para o senhor Herlander, ao fim de tantos anos naquela casa, e saber que nunca poderia leiloar os objectos com que sempre sonhou, além de se perceber que os valores que lançava para o ar já surgiam de forma quase mecânica e com pouco brilho no olhar.
Sempre consciente de tal situação, aquele homem passava os dias a pensar quantos mais cabelos brancos lhe iriam nascer devido àquele trabalho repetitivo e já desinteressante, embora prosseguisse a sua vida profissional de forma estóica.
O que o senhor Herlander nunca escondeu foi que da plasticina jamais o privariam. Porque essa era a sua maior fonte de sonhos, com ou sem televisão ligada.

Saturday, January 06, 2007

As Caixas

Júlio abriu a caixa na qual, em tempos, o senhor Lúcio guardou os seus alfinetes da época em que foi alfaiate em Campo de Ourique. Na caixa que foi outrora do seu avô, Júlio guarda parte dos seus bens mais preciosos: quatro árbitros de Subbuteo e um mini-globo, que se tornou numa célebre Taça do Mundo. O garoto sempre disse ao avô, enquanto pôde contar com a sua inestimável presença, que aqueles objectos o ajudavam a sonhar, tal como o ajudava o seu triciclo cuidadosamente artilhado como se de uma ambulância se tratasse, ou mesmo os bonecos de trapos que utilizava para contar as suas histórias emergentes de filho único.
Júlio começou desde muito cedo a realizar campeonatos de Subbuteo, um jogo de futebol praticado com os dedos a impelirem os bonecos contra a bola, abrindo desde logo todas as caixas compartimentadas no seu pensamento.
Havia uma caixa com um anel Swarowski, da zona do Tirol, na Áustria, que o seu pai, Humberto, oferecera à sua mãe, Deolinda. Essa pequena caixa fazia de tribuna para os presidentes dos clubes ou selecções e ficava bem de frente para o centro do terreno, representado por um pano verde macio que se entendia sobre a alcatifa, bem superior à influência dos poderosos ácaros.
Uma outra caixa, transparente, foi-lhe oferecida pelo pirata do Filipe, agora a viver e a trabalhar em Barcelona, o único amigo com quem organizava campeonatos e competições de todas as espécies, e com quem sonhava mais caminhos futuros para além do jogo.
Havia depois uma caixa negra, não de um avião, mas para guardar a caneta mais valiosa que o avô de Júlio tivera. Esse objecto rectangular simulava ser uma ambulância que transportava os atletas lesionados para a enfermaria, onde eram submetidos desde logo à magia e aos créditos inabaláveis da cola UHU.
Havia ainda uma outra caixa, bem colorida, em tons de vermelho e amarelo, com motivos e letras espanholas, que fazia de suporte às bancadas superiores, a si encostadas. Esta caixa, no entanto, olhando do chão para a plateia, mais acima, tornava-se invisível. Os dois amigos explicavam esta situação com humor e ironia: Espanha não existe, é um aglomerado de províncias, pelo que a caixa também não se pode ver!
Outra caixa, a do chá, construída em latão há já muitas décadas, pela mesma ordem de ideias que presidia à colocação estratégica da caixa espanhola, era o suporte invisível das bancadas na lateral direita do estádio, por detrás de uma das balizas. A justificação dos petizes para a deixarem escondida era simples: quem é que trouxera primeiro o chá para a Europa? Os portugueses ou os ingleses?
A arte da construção dos estádios, tarefa sempre antecedente à colocação do terreno de jogo, carecia de um poderoso espírito arquitectónico, que Filipe e Júlio desenvolviam com grande perícia. A engenharia também estava bastante presente, motivo pelo qual procuravam sempre as melhores caixas para fazer de alicerce às bancadas. Jamais poderiam permitir que houvesse uma derrocada e consequentes ferimentos entre os adeptos, fiéis seguidores daquele jogo.
Mas havia uma outra caixa, esta de bombons, que eles reconheciam facilmente, mesmo depois de lhe terem retirado o rótulo. Chamavam-na caixa mágica devido a um dia, sem se lembrarem bem porquê, ter permanecido no seu interior um pedaço de tecido vermelho. Os jovens, sempre bem humorados, confessavam não saber se aquela cor quente e mágica os remetia mais para o ilusionista Luís de Matos ou para a magia do pano de cor vibrante a esvoaçar nas aberturas dos Campeonatos do Mundo.
Um dia, enquanto montavam um novo estádio, provavelmente pela milésima vez, o pequeno Júlio virou-se para o seu companheiro Filipe e perguntou-lhe se aquele lenço vermelho não ficaria bem ao artista Tony de Matos. Filipe sorriu e apontou para a caixa de madeira vetusta e fechada, onde se encontrava a correspondência amorosa trocada pelos avós do amigo, e comentou, recordando talvez o maior êxito do cantor romântico português: “cartas de amor, quem as não tem?!”.

Friday, January 05, 2007

O Caleidoscópio

José e Manuela passeavam várias vezes no jardim do Campo Grande, já lá vão 30 anos. Nessa altura, os boatos de que os jardins são para os velhos não tinham eco, nem sequer existiam.
Existia sim, além de jovens casais que aproveitavam aquele espaço verde para passear ou para navegar naqueles pequenos barcos a remos, uns carros a pedais que davam voltas e voltas ao jardim, ininterruptamente, conduzidos por crianças que, mesmo tendo cara de miúdos, já eram muito rodadas naquelas andanças.
Pedalavam o mais que podiam, com os joelhos quase sempre a bater um no outro, como que vindos dos ressaltos no tecto do veículo, presas ao volante com toda a determinação que tinham. E quando precisavam de travar, lançavam-se àquela alavanca do seu lado direito e puxavam-na com toda a pujança que possuíam.
Passavam pelo Centro Comercial Caleidoscópio, estrategicamente colocado à beira lago, e ficavam quase desclassificados, pois distraíam-se a procurar se o Bambi ainda estaria em exibição no cinema situado no piso de baixo daquele espaço comercial.
José e Manuela iam caminhando, felizes pela paz que lhes conferia o amor que sentiam um pelo outro, comentando aquela agitação que os encantava, planeando levar, um dia, os seus filhos àquele espaço tranquilo da sua cidade natal.
Estavam ainda longe de pensar descobrir tamanho encantamento até ao dia em que visitaram Paris e o Museu do Brinquedo e das Novas Tecnologias. Lá, espreitaram deliciados através de um caleidoscópio e viram muito mais do que a imaginação lhes permitia. Muito mais do que os simples espelhos inclinados, paralelos a uma determinada direcção, com os seus pequenos fragmentos de vidro colorido.
Chegaram a ver o filho que ainda não tinham a pedalar esbaforido naqueles carros a pedais. Conseguiram ver o lago do Campo Grande a ser transportado junto com o Centro Comercial Caleidoscópio para debaixo da Torre Eiffel. E à sua volta, tornando ainda mais viva aquela obra de Gustav, viram raparigas a fugir racionalmente dentro dos carros, enquanto os rapazes pedalavam emocional e incessantemente atrás delas, na cidade luz, mas também do amor e dos sonhos.